Highway on the river (ou O Fogo que aquece a estrada)

Por Victor Diomondes

Salomé, de Oscar Wilde, fez um ano. Navegamos para muito longe, e já não são raras as vezes que olhamos para o lugar de onde partimos. E ainda está ali, como um ponto invisível no horizonte chamado memória. Foi uma agonia daquelas. Tinha corre-corre da produção para dar conta dos figurinos, maquiagem e cenário, que desde o inicio – o inicio mesmo, aquele que se dá na cabeça – não eram fáceis. Tinha a construção do conceito do espetáculo e dos personagens, o que despertou também um inevitável embate sobre o conceito. O conceito, a idéia, precisa do conflito para se materializar, para se unir ao real. E desses embates, dessas tempestades de idéias, desses milhares de brainstorms, partimos do Encontro para a realização conjunta.

Realizamos. Estamos inteiros, vívidos, prontos para outra. Como imaginamos que seria. Mas com a diferença de ser real. Continuamos a apresentar um espetáculo que como produto é digno de atenção e repercussão, como obra de arte é autoral e ousado, e como sentimento é intenso e irradiante (amando ou odiando). Por tudo isso nós também continuamos. Porque o que nos faz seguir em frente, estarmos unidos, é uma comemoração. A comemoração do Encontro que tivemos no início. E a novos encontros (Will, Rayara, Dora e tantos outros que seguiram e que ficaram).

Finalmente, fomos para outros mares. Saímos do berço, que foi a Escola de Teatro e seguimos para o FIT – Festival Ipitanga de Teatro. Nosso primeiro passo em direção à estrada. Foram duas vertiginosas semanas de preparação para essa viagem. Mas em todo mito há a Viagem. E com Salomé não poderia ser de outra maneira. Mesmo com a exclamação de todos (“duas semanas é pouco”), acredito que ninguém duvidou.

A nossa equipe e produção correu feito louca. O rapaz que veste saia em cima da mesa de aço, ostentando um olhar venenoso, astucioso e antigo, não é só ator. É produtor, desenhista, cenotécnico, iluminador. Um loiro alto dançava com seus passos firmes pelo palco, usando sua sensibilidade espantosa para bater cada prego, para olhar o alinhamento de cada voal. Um cara meio baixinho, tipo o Wolverine, esbanja algo de zen em sua fisionomia de fauno na maneira como toca sua flauta. E falando em faunos, também estava lá aquele fauno. O fauno velho, o bardo da iconoclastia, com seu Holywood no bolso e com gestos tão precisos quanto suas palavras. Ele sempre sabe o que fazer, e sempre tem o que dizer. Também tinha um jovem chegando agora. Um cara que parece ter viajado o mundo, um rapaz que passeava por cada fio, por cada refletor, que se meteu debaixo daquela mesa de matalon – que podia esmagá-lo – para ajeitar aquele fio ruim que dá choque. E tudo o que a coragem desse cara custou foi um conhaque, por que logo em seguida ele foi operar a luz pela primeira vez. E aí custou um vinho. Nossa, eu podia falar de muitos, por que somos muitos. Mas acho que seria necessário um blog só para isso.

Havia os sorrisos que se desenhavam em cada rosto. Pareciam desenhados por aqueles ventos escaldantes do deserto, aqueles que riscam a areia dura como que tirando um sarro dela. E entre eles havia um especial. Aquele que deu origem a tudo isso. Com suas botas e com seu outro vestido preto. Com sua maquiagem pesada nos olhos de gata. Ela sorria muito, ria muito, e foi sorrindo e rindo que trabalhou feito algo indescritível para fazer desse momento possível. Desafiou a todos, e até a ela mesma. E até hoje faz isso, dotada de sua graça felina. E acho que sempre fará.

Na estrada e na cidade havia um céu abençoado. De um cinza tom de sabedoria, olhando de lá de cima e pronto para mandar sua dádiva. Pronto para mandar sua chuva. E a chuva caiu grossa, macia, poderosa. Essa chuva encontrou nossa chama. Outro Encontro ocorreu. Contamos nossa história, as luzes se apagaram, os aplausos cessaram. De longe dava para ver a fumaça subindo os céus como uma serpente.

No ajuntamento de gente foi um fazendo uma fogueira, e outra fogueira, e outra. E desse monte de fogueira estalando no chão frio e molhado saiu um negócio que mais parecia reflexo das estrelas lá de cima. Gente de monte aquece qualquer caminho. Fé de monte brilha junto com o que há lá no céu.

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